quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Janelinha


Não era sua primeira vez, mas mesmo tendo passado por isso antes, se sentia ansiosa e com medo. Estava numa situação de tensão e com a tensão somada à ansiedade, disparou a movimentar a língua dentro da boca numa tentativa de empurrar o medo por entre os dentes. Quando percebeu, havia pingos de sangue enfeitando uma folha tamanho ofício, cujo plano de fundo era problemas de subtração. Problemas que para ela, mais pareciam monstros cheios de olhos na cara e na testa e agora, todo pintadinho de vermelho. Perdera, aos sete nos, neste dia, precisamente às 13h30min, seu segundo dente de leite, durante a sua primeira avaliação de matemática, aplicada pela professora Glória, agora nada satisfeita em recolher o teste naquele estado. Obviamente fez hora no banheiro quando a professora pediu que fosse se lavar. Pegou o dentinho, embrulhou no papel higiênico para dar a mãe, que fazia questão de colecionar todos os dentes que haveriam de cair. Lavou e enxaguou a boca. Fez xixi e esperou o sinal bater. A prova deveria ser feita numa outra oportunidade. Ao caminhar de volta para a sala de aula, através do corredor largo cheio de portas nos dois lados, assustou-se com a madre Ângela, uma coordenadora de aparência rude, com certo ar de malvada, onde supostamente foi inspiração para todas as personagens clérigos vilãs, dos variados filmes que haveria de assistir na sua vida. Tremeu de medo. Todos tinham medo dela, de sua cara áspera, seus cabelos escuros e grossos, mal colocados por baixo do pano, seu buço e sua voz grossa. Até mesmo do crucifixo de madeira com aparência muito pesada que pendurava no pescoço, ela tinha medo. Afinal, se Jesus está com ela, quem estaria comigo? Pensou... Abaixou a cabeça e passou por madre Ângela. Prendeu a respiração na tentativa de ficar invisível... Ufa, conseguiu. Duas vitórias no mesmo dia. Havia vencido o monstro da matemática e a madre má que tinha a cruz entre os seios. Só não havia vida suficiente naquela pequena menina, para conscientizá-la de que um dia, numa oportunidade breve, estaria diante da madre novamente e que na semana seguinte não haveria como escapar daquela bendita prova. Mas, como a vida ensina, ela aprendeu. Aprendeu que todas as vezes que um dente de leite estava mole, ficava ansiosa, mas era inevitável que ele caísse. Que quanto mais tentava preservá-lo, mais ansiedade e incômodo lhe causava. Dentes de leite se vão... Melhor que caíssem tão logo estivessem moles. Aprendeu que melhor se preparar para a prova e enfrentá-la de uma vez, a adiar um teste que será implacável na segunda chamada. Que prender a respiração não a tornava invisível. Melhor erguer a cabeça e respirar, mesmo quando não há nada a dizer. Aprendeu também que cara feia e aspectos rudes podem esconder um grande coração e, sobretudo, que Jesus está com todos, não na forma triste de uma cruz pesada no pescoço de uma madre ou de qualquer indivíduo que use o acessório levianamente, mas está em cada aprendizado, cada respingo de sangue de um dente que se vai e em cada equação matemática, aparentemente incalculável, que a vida pode apresentar.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Revelação


Numa caminhada no bosque... Sim num bosque aqui na minha cidade, muito freqüentado por crianças porque nele há um jardim zoológico, com animais silvestres soltos, alguns velhinhos se exercitando a passos lentos, casais namorando, sombra fresca e uma brisa que cheira jaula de hipopótamo, tive uma epifania! Percebi que havia me libertado do tédio. Percebi assim, sem pensar, apenas notei. Notei que não moro mais no mesmo bairro, que não uso mais o mesmo perfume, que mudei o estilo de vida, que mudei o paladar para certos alimentos, que não aprecio mais cabelos grisalhos e agora o que conta é a elegância... Mudo constantemente o caminho para o trabalho. Neste mês já mudei 3 vezes o cabelo (tudo bem, sei que é um exagero). Não caminho mais na lagoa do taquaral, já não vou mais à mesma padaria e descobri outro posto de gasolina. Já não almoço mais aos domingos naquele restaurante tão confortavelmente conhecido por mim e minha família. Eu que andava generalista, fatalista, quase pedra bruta, resolvi redescobrir o que é único, o individual. Cada lugar é um novo lugar, com paisagens novas. Cada pessoa é única, com características únicas. Cada novo amigo é uma nova oportunidade de conhecer outra vida. Cada novo beijo, cada novo abraço... Não estou trancada entre grades, estou livre e percebi que não usufruía como deveria desta liberdade. E como é bom!!! Como é bom ver cada hora como uma hora que não volta mais, cada filme como um novo roteiro, cada notícia como uma nova notícia (apesar das fatalidades se mimetizarem) cada sorriso é um sorriso com uma emoção, assim como as dores. Mudei o esmalte, mudei o pensar... Acho que tem a ver com essa coisa dos quarenta que se aproxima.

Sou única. Não há ninguém neste mundo igual a mim. E cada árvore é uma árvore, cada animal de estimação que tive tem sua característica própria, meus filhos são diferentes, meus alunos, meus amigos... Uma sensação de liberdade tomou conta de mim. As pessoas são diferentes. Que bom!!! Vivi tantos anos e fui generalizando a vida e assim, num passe de mágica, resolvi especializá-la. Esta foi a epifania do dia 3 de novembro. Tudo é único, portanto especial e merece cuidado, justamente por não haver outro igual. Não sei se Goethe, Jesus Cristo, Santo Agostinho, Nietsche... Sei lá quem anunciou isso, mas o fato é o que eu senti hoje. Antes assim, sei de gente que morre generalizando a vida e eu a descobri rara, preciosa e merecedora de muito cuidado.